Lapso Trivial

Sobre Cidades que Afundam em Dias Normais

Capa do livro Cidades Afundam em Dias Normais
Cidades afundam em dias normais
De Aline Valek

Minhas primeira leitura de Cidades Afundam em Dias Normais foi no fim do ano passado. Desde então queria escrever algumas linhas sobre o livro, mas não consegui. Precisei deixar suas páginas afundarem e emergirem em uma releitura para conseguir falar algo sobre como a história de Alto do Oeste conversa com a minha. Aliás, é provável que haja spoilers adiante, mas nada que comprometa a leitura. Ah sim e todas as aspas são da própria autora.

Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek, é repleto de significados, fala de vivências, lembrança, esquecimento e violência. Mas é, para mim, principalmente um livro sobre o tempo, o que ele distorce e revela sobre como nos refletimos em lugares nos quais vivemos e nas pessoas por quem passamos. Ao falar sobre suas memórias mais antigas, a personagem Tainara diz estarem borradas “...como se tudo estivesse debaixo de uma água escura.”

Organizado como uma exposição fotográfica, o livro também funciona como uma metáfora para a memória, fragmentada e reorganizada a posteriori, para dar algum sentido às coisas. Este reencontro com elementos do passado que perderam seu antigo significado vira algo como a tentativa de enxergar cores em uma foto em preto e branco. Se estreitarmos os olhos e forçarmos a imaginação até dá para ver o verde das folhas ou o azul do céu, mas o registro continua sem cor. Como a própria autora diz na introdução:

<img src="https://i.imgur.com/4euBuMK.jpg" alt="Citação marcada no livro: "Fotografias são imagens incapazes de se mover. Quem as põe em movimento é quem observa.""> Escolas, avenidas ou praças que afundam - literal ou metaforicamente - quando voltam à superfície nunca são as mesmas. Seja ao visitar a família em um fim de semana e trafegar por ruas que em algum momento foram um caminho, ou tentar puxar do lago da memória e ligação entre locais e momentos, em uma busca por aquilo que se sentiu, mas se perdeu.

Tudo que eu disse até agora, provavelmente fala mais de mim do que do livro, mas literatura não acontece no vácuo e acredito que minha leitura de Cidades Afundam em Dias Normais tenha sido mais pessoal do que a média. Meu primeiro contato com o livro foi marcado pela notícia, recebida poucos dias antes, da morte de um ex-colega do ensino fundamental. A partir daí, por mais vívido que fosse o vermelho da terra do cerrado, na minha imaginação Alto do Oeste era cercada por morros verdes, ruas de paralelepípedos irregulares e as construções baixas e decadentes da Indaial da minha infância e adolescência. Em comum entre a Alto do Oeste que Aline escreveu e a cidade da minha leitura apenas a aptidão para ser inundada, literalmente ou não.

Me identifiquei com Kênia de imediato pela sensação nítida do que é reencontrar uma cidade em que se pode localizar tudo, menos o seu lugar. E de perceber na minha história o momento (talvez um dos) em que me deixei afundar. A obra, porém, eleva essa sensação a outros níveis. A Alto do Oeste que emergiu do lago já não era a mesma da infância de Kênia, ou o lugar que Rebeca deixou para trás para ter sua filha, entretanto, mesmo esta cidade do passado já não faria sentido para os Xavantes, expulsos por bandeirantes, tanto anos antes. A terra é transformada pela violência humana, simbólica ou direta, mas também, como não poderia deixar de ser, pela intransigente violência do tempo, que carrega tudo com suas águas e deixa emergir apenas silhuetas de lama. Para que os locais que outrora foram, agora existam apenas no “...esforço em conservar a memória do que se perdeu.” Para citar uma vez mais a autora.

O fim dessa segunda leitura me deixou com uma sensação estranha, mas familiar. A curiosidade sobre o destino de Tainara me lembrava a forma como me pergunto, eventualmente, por onde andam os antigos colegas de colégio. O ex-baterista da minha primeira banda, o bonitão que dizia fazer as vezes de garoto de programa para idosas da cidade vizinha, as pessoas que vinham de um bairro tão distante quanto as nossas realidades. Quantos deles afundaram? De certa forma todos, alguns para jamais emergir.

Visualizar um lugar a que se pertenceu, perceber que, como diria Kênia, “...a cidade onde vivi não existe mais, nunca vai voltar, nem acontecer de novo, ela é impossível”, mas ainda assim não saber exatamente a qual lugar pertence talvez seja uma forma de entender que na verdade “...fomos feitos para partir”.

Se recomendo a leitura? Sim, com tranquilidade. Acredito que outros leitores encontrarão nestas páginas algo completamente diferente do que eu relatei acima, mas isso pouco importa. Pois, para mim, a melhor literatura é aquela capaz de tocar quem lê e Cidades Afundam Dias Normais não apenas me tocou, mas foi uma chave para um lugar submerso dentro de mim, uma forma de olhar para tudo que eu deixei para trás.


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