O viralatismo, os professores e o salário do Neymar
Se há um traço recorrente no Brasil, especialmente em suas elites ou em grupos que se enxergam como tal, é o que Nelson Rodrigues chamou de viralatismo. A ideia de que nossa cultura é vulgar, efetivamente inferior se comparada ao mundo desenvolvido e, portanto, deveria tentar, de alguma forma, se tornar igual à destes países.
Entre os diversos aspectos nos quais esse pensamento se revela, está a eterna comparação entre os salários de professores com os ganhos de astros do futebol, como Neymar. Uma disparidade salarial que supostamente evidencia o quanto nossa cultura valoriza o “pão e circo” em detrimento da educação.
Neymar, claro, é apenas um símbolo, afinal ele sequer joga ou recebe de algum clube brasileiro. Quem paga o equivalente a 317 milhões de reais por ano ao jogador é o catari Nasser bin Ghanim Al-Khelaïfi, atual dono do Paris Saint-Germain. O empresário, porém, não desembolsa essa bagatela anual porque ama futebol, ou por defender a cultura brasileira de “pão e circo” (oi?), Neymar recebe essa quantia pois, no fim do dia, ele dá um retorno financeiro ainda maior.
Ter um jogador como Neymar – ou Messi, ou Cristiano Ronaldo – não apenas eleva o nível técnico do time, mas atrai público, torcida para o estádio. engajamento nas redes e audiência aos jogos televisionados. A receita vem para o clube na forma de venda de uniformes, ingressos, direitos de transmissão dos jogos, direitos para uso do time em games como FIFA ou Pro Evolution Soccer, além das premiações dos campeonatos e outras formas de receitas, afetadas diretamente pela presença do jogador.
E, bem, nós amamos nossos professores – ao menos quase todos – mas o valor que geram é intangível, difícil de contabilizar e normalmente refletido a longuíssimo prazo. O retorno financeiro então justifica a diferença salarial entre professores e astros do futebol? Claro que não. Mas explica o sistema econômico em que estamos.
Afinal não há dúvidas da diferença que investir em educação faz em um país, mas nenhuma dessas métricas, aparentemente, interessa a muitos grandes empresários. Convenhamos, se o dono do PSG colocar sua grana em ensino fundamental público, ele provavelmente não espera rever estes petrodólares tão cedo.
Sob a ótica capitalista crescimento e retorno financeiro não são apenas desejáveis, mas obrigatórios. Uma empresa com operação sustentável, sem dívidas e ineficiências, com faturamento saudável e constante, é considerada estagnada. A hipotética companhia acima provavelmente terá de substituir sua diretoria, comprar outra empresa, ou modificar sua operação de formas bizarras (como o Twitter faz a cada meio ano) para tentar forçar alguma valorização e deixar seus acionistas felizes.
O Facebook - e demais redes do atual grupo Meta - tolera grupos neonazistas e antidemocráticos, não porque Mark Zuckerberg é uma pessoa ruim (ao menos não só por isso), mas por saber que esses grupos geram engajamento, permanência na rede e consequente valorização de sua plataforma publicitária. Se alguma pessoas morrem no meio do caminho, é do jogo.
Então não há nada mais natural do que se alarmar com o salário de astros do futebol, do cinema, ou com a existência e as atitudes de bilionários, enquanto professores passam doze horas diárias em sala de aula apenas para pagar as contas. Mas é preciso entender que se opor a essa injustiça é, em alguma medida, se opor ao capitalismo.
A despeito disso, muitas vezes os maiores críticos da desvalorização do ensino na pátria de chuteiras também acreditam em fantasias alucinadas como o self-made man e a meritocracia em um país com pontos de partida tão desiguais quanto o nosso.
O primeiro passo para um sistema justo é dar nomes às coisas. Não é a cultura brasileira que subverte valores e significados para maximizar o lucro, é o sistema capitalista. Ah, e só para garantir que eu irrite o maior número de pessoas o possível, também estou longe de ser convencido de que o Marxismo é a última resposta à situação em que vivemos.
Eu sei, a gente nasceu sob a égide do capitalismo global e, mesmo após não entregar nada do que prometeu, a busca pelo lucro a qualquer custo – ambiental, artístico ou humanitário - ainda parece tão natural quanto o movimento de translação da terra, ou a força dos ventos.
Nesta hora me amparo nas palavras de uma das maiores autoras do último século Ursula K. Le Guin, falecida em 2018, ao receber o National Book Award quatro anos antes:
Quem lê, escreve ou consome histórias de alguma forma, conhece o poder da imaginação. Sua capacidade de nos levar aos melhores – e piores – lugares, mas principalmente sabe como ela muitas vezes precede as mudanças na realidade.
A queda das monarquias começou quando homens como John Locke foram capazes de pensar uma sociedade em que o poder dos reis não fosse absoluto, as revoluções republicanas dali a alguns anos foram consequência. Nem tudo que saiu de seu ideário se revelou positivo, mas, salvo alguns lunáticos, ninguém aqui quer voltar a viver em uma monarquia absolutista.
Imaginar uma sociedade em que o lucro não reine absoluto não é suficiente, mas é um passo necessário que muitos já tentam dar. Um mundo com mais Wikipedia do que Google, no qual Neymar ganhe um ótimo salário enquanto emociona e diverte torcedores do PSG e da seleção brasileira, mas em que um professor não precise trabalhar uma quantidade abusiva de horas ou abdicar de sua autonomia em sala de aula por medo de não ter o que comer no mês seguinte.
A cultura não é a culpada por nossa realidade, ela é o caminho para transformá-la.
- 5 toasts