Lapso Trivial

Últimas leituras #1

Capa do livro Quarto de Despejo
Quarto de Despejo
Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.

Lido por mim com um vergonhoso atraso, Quarto de Despejo é uma refeição que se engole crua.

Não é um Davi, de Michelangelo, esculpido nos mínimos detalhes em busca da perfeita simetria, mas uma obra erguida através de marretadas secas da realidade, a qual nem por isso é menos poética.

Ao leitor que se encontrar com este livro em 2021 - e arrisco dizer por uns tantos anos por vir - sequer será necessário tentar imaginar os momentos contidos nas páginas, bastará puxar da memória qualquer envolvimento, direto ou mediado, com os marginalizados que formam a base do país.


Capa do jornal Extra com a foto de uma pessoa que busca ossos nos fundos de um supermercado

Mais do que apenas tema central da narrativa, a fome é o divisor de águas, a fronteira a ser vencida diariamente para que a autora tenha o direito a qualquer coisa além. Os dias em que Carolina consegue driblar a fome, sua e dos filhos, são os momentos em que ela canta, registra versos e dá vazão ao potencial de seus pensamentos. É ao contornar essa barreira que a narrativa de Quarto de Despejo vai além do sofrimento, para encontrar também poesia e graça. O que me faz lembrar dos versos do Emicida.

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi.

AmarElo - Emicida (part. Majur e Pabllo Vittar)

Fome, violência e pessoas que vivem à margem de uma sociedade que só não as ignora, quando assume sua vontade de exterminar, os diários de Carolina Maria de Jesus são o retrato de um passado cujas garras estão cravadas no presente e pronto para engolir nosso futuro. No Brasil, com seu longo passado ainda pela frente, é um livro mais do que recomendado, é leitura obrigatória.

Capa do livro Homo Ferox
Homo Ferox
As origens da violência humana e o que fazer para derrotá-la, de Reinaldo José Lopes.

Em Homo Ferox o jornalista de ciência, Reinaldo José Lopes, reúne estudos diversos para buscar entender de onde vem a violência humana e descobrir se sua origem em nossa espécie é uma imposição natural, fisiológica ou cultural.

A resposta, já esperada é: Depende, a construção da violência humana é fruto de uma série de fatores, afinal somos seres complexos, biopsicosociais ou bioculturais, como o autor colocou.

A previsibilidade da resposta, porém, em nada diminui o valor da obra, grande divulgador científico que é, Reinaldo nos leva quase que pela mão para entender o papel que a violência teve em nossa formação enquanto sociedades - e vice-versa - além de desmontar interpretações simplórias sobre o papel da natureza, em especial do DNA e dos hormônios, bem como da cultura e das religiões no comportamento humano.

O momento mais fraco do livro, no meu ponto de vista, é o capítulo final, o qual trata de possíveis soluções para diminuição da violência. Os pontos levantados pelo autor são válidos, mas conversam pouco com a riqueza de conteúdo que Reinaldo construiu ao longo da obra, além da incomoda preponderância de exemplos e conceitos ocidentais, que vai contra o que livro colocara até então.

Ainda não assim, nada disso apaga o brilho de Homo Ferox, uma leitura tão envolvente quanto interessante, que não perde o ritmo mesmo quando o autor é obrigado a “dar um passo atrás” para explicar conceitos, como ao recapitular aulas de biologia do ensino médio para garantir que o leitor compreenda os mecanismos do DNA ou as partes do cérebro.

Livro recomendadíssimo para quem quer entender um pouco melhor os fatores que influenciam essa criaturinha um tanto quanto raivosa que somos.

Capa do livro Impérios da Comunicação
Impérios da Comunicação
Do telefone à internet, da AT&T ao Google, de Tim wu, com tradução de Claudio Carina.

Leitura obrigatória aos ouvintes do Podcast Tecnocracia. Tim Wu ilustra, através da trajetória das indústrias de telecomunicação, rádio, cinema, televisão e internet, seu ciclo de ascensão, consolidação, domínio e eventual queda. Qualquer semelhança com impérios da antiguidade (ou não) pode não ser mera coincidência.

Lançado em 2011, o livro se detém à história da comunicação dos Estados Unidos no século XX e início do XXI, mas não é difícil traçar paralelos com situações vividas em território brasileiro, embora geralmente com algum atraso.
Impérios da comunicação ilustra em detalhes o processo que leva determinadas empresas, ou grupos, a deterem a “chave geral” da indústria (Master Switch, título original do livro). A qual as permite inviabilizar, incorporar ou apenas obliterar eventuais concorrentes, bem como atrasar em décadas revoluções tecnológicas com potencial para colocar em risco seus domínios. (Casos da secretária eletrônica e da rádio FM.) Sempre com leniência, ou mesmo suporte, das agências reguladoras e órgãos supostamente responsáveis por manter o jogo dentro das quatro linhas.

Ao narrar uma história da comunicação norte-americana do século XX e início do XXI, Tim Wu nos dá as ferramentas para entender o que viria a se tornar o duopólio do conteúdo na internet no mundo - Facebook e Google - e como se dariam suas táticas predatórias nos anos seguintes, vide a tentativa de compra do Snapchat e sua virtual eliminação do mercado, perpetrada pela empresa de Mark Zuckerberg.

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#Literatura #não-ficção #resenha